O Fermando - Parte I

Ora, o Fernando, de vez em quando, ou melhor, quando a oportunidade surgia, fazia das suas...
Uma dessas situações, entre muitas outras, ficou-me gravada na memória, até porque ela encerra e iraduz um momento crucial das nossas vidas.
Hábito de todos os dias, entre as muitas tarefas comuns de pais para crianças, a busca do leite à Agrária.
Um ritual, este, que era cumprido por todas as crianças com grande disponibilidade, até porque era mais uma excelente oportunidade de estar com os amigos.
Ora, naquele incerto dia, lá pegámos na leiteira (marmita) e encetámos a curta caminhada de todos os dias, rumo ao depósito do leite, hoje Estação Experimental de Leite e Lacticínios.
Pelo caminho, as brincadeiras e diabruras do costume. Ora uma corridinha, ora uma pausa; cambalhota aqui; salto acolá.
Sacam-se grilos, vai-se às uvas, cortam-se espigas.
Fazem-se tropelias. Asneiras, quanto baste...
Mais à frente, o tanque, um grande tanque, mais do que uma verdadeira piscina, todo ele em lajes de granito como hoje não se usa. Bem colado a uma fonte que o enche, uma enorme mesa, com bancos, tudo fixo e em pedra.
Para um maior e melhor enquadramento deste espaço paradisíaco, nada melhor que um conjunto de plátanos, de bom porte, frondosos.
Qual ambiente romântico, este, onde a pureza jorra e convida a permanecer. Aqui, ali, facilmente muita gente se deixa enlevar pelo sonho e esperança de um Mundo e de uma vida melhores.
Mas isso é outra história; deixemo-la...
Após uma curta paragem, talvez para retemperar forças e com algumas asneiras de premeio, é altura de atravessar um pequeno monte, ele, um pulmãozinho ali à mão, não fosse a então vila, hoje cidade, de Paços (de Ferreira), ainda um paraíso.
Tudo se passa há 40 e tal anos, fins dos anos 50, princípio dos 60...
O Fernando e os comparsas do costume. Ele, líder, até porque era um pouco mais velho e, é bom dizê-lo, um tudo-nada mais rufia que todos os outros.
O Fernando, dizia, resolveu fazer das suas... Vai daí, deu-lhe para fazer lume. Imagine-se, a partir de umas pedras brancas e rosáceas que, aqui e ali, se encontravam entre pinheiros e eucaliptos, misturados com o mato.
Fricção daqui, fricção dali. Faísca e mais faísca, o lume não pegava, até porque era uma tarefa altamente sofisticada e que só a perícia e a argúcia do homem medieval conseguia contornar.
Mas, o nosso moço - feito herói - lá conseguiu fazer lume, isto para gáudio e alegria dos amigos. A imprevidência do fogo, nas mãos de crianças! Num ápice, de um astilhozinho inofensivo, fru-lo do sopro de um vento estival, eis que uma pequena labareda brota e propaga.
Todos nós, em cuidados redobrados, corre-que-corre ao tanque quase contíguo, enchendo as leiteiras, não de leite mas de água, em propósito incontido, mas ingénuo, de apagar as chamas em crescendo. Impossível o controlo do lume... Vai daí, esperteza de criança em acção, "é pernas para que te quero", e toca a fugir do local. Sem alarido de qualquer espécie, "bico calado" e... "rabi-nho entre as pernas".
Atormentados, aflitos, o Fernando e nós, lá fomos cumprir a nossa tarefa, primeira, e única, de todos os dias.
Ganhando vez, perfilados à entrada do depósito do posto do leite, nenhum de nós ousara dizer palavra e, muito menos, fazer qualquer comentário.
Sempre com o sentido e olho no local do crime, víamos crescer a fumarada, isto sem que o fogo fosse convincente, até porque a mata era muito pouco densa e, diga-se em abono da verdade, o silvado era roçado com frequência e a área limpa com certa regularidade. Não era por acaso que um pouco mais adiante existia uma vacaria e, por conseguinte, a necessidade deste tipo de tratamento natural de excrementos de animais.
Enquanto isto, é chegado o momento do alerta.
- Fogo no monte, fogo... Chamem os bombeiros!
A sirene, as sereias dos bombeiros, um pouco mais acima, passado o portão, pegado à Rotunda, atroam os ares.
Poucos minutos volvidos, lá surge o sumptuoso "plakard" com meia dúzia de "Soldados da Paz", vestidos a rigor, altivos, com farda bem vincada e capacetes reluzentes.
Nós, nem tuge nem muge, atormentados de todo, lá íamos ajuizando do "lindo serviço".
Mais fumo do que fogo, muito pouco propagadas as chamas, com umas simples mangueiradas, o braseiro aparece extinto, isto ainda antes de haver chegado o segundo e o terceiro carros da bomba.
Mais tranquilo o Fernando (e nós), serviço aviado, leiteira cheia, aprendida a lição, regressámos a casa.
Na memória, na cabecinha de cada um de nós o "trabalhinho" protagonizado, o perigo corrido.
Nesse dia, ninguém entornou o leite, não houve lugar a demorar no regresso a casa.
Ao pai, à mãe, nem uma palavra.
Comeu-se o que se tinha a comer, fizeram-se os deveres da escola sem lugar a protestos e... cama.
No outro dia, um novo dia; tomou-se o leite, ainda que não totalmente esquecida toda a história que o envolveu...
Nos dias que se lhe seguiram, tudo voltou à normalidade e outras traquinices de criança tiveram lugar.
Afinal, todos nós fomos meninos.
Também tu, Fernando; também nós.
Lembras-te?!...