HISTÓRIA DUM SUICÍDIO (1º cap.)

Foi transportado, de urgência, ao hospital mais próximo em estado de semi-coma.
Tinha tomado aquela brutal dose com uma garrafa de "sovidal". Uma mixórdia a que chamavam vinho.
Espumava pela boca.
Ás perguntas e pedidos de reacção por parte do corpo clínico, habituais nestas circunstâncias, respondia o nosso sujeito com um silêncio sepulcral.
A sua figura pálida, sombria, triste, parecia ter saído duma qualquer obra de Frankenstein. Simplesmente medonha!...
O estado de sonolência depressa evoluiu para um estado de inconsciência e depois coma profundo.
-"Normalmente uma overdose destas revela-se fatal"- confidenciaram-nos, dias mais tarde, os médicos que o trataram. - "Mas, se, de todo em todo, não resultar em morte, pelo menos deixará mazelas para toda a vida" - acrescentaram.
Os olhos semi-cerrados deste paciente escondiam um olhar sem chama pelo que se adivinhava que sofria, já, a morte na alma. Na verdade, a forma como o espectro da morte parecia rondar-lhe a porta dava mesmo a entender que queria arrombá-la para depois, entrando de chofre, arrebatar-lhe o último sopro de vida.
- "Quem tenta matar-se há muito que já está morto por dentro!" - disse-nos um psiquiatra ligado a este tipo de ocorrências.
Mas, voltemos ao sujeito...
A intervenção cirúrgica tornava-se urgente, como era bom de ver. A sintomatologia não deixava sombra para a menor dúvida. A diminuição do ritmo cardíaco e respiratório indicavam que a vida estava presa por um fio. Por isso a traqueotomia era uma necessidade imperiosa. O apelo ao milagre era, naquele momento, uma espécie de apelo ao impossível.
- "Alguém, vestido de sotaina ou não, bote aí uma reza e faça uma oração com urgência, implorando a mão do Nosso Salvador"- disse um clínico, sem que ninguém soubesse, até hoje, se o dizia por escárnio ou por desespero.
Independentemente de saber quais as verdadeiras intenções do clínico, uma enfermeira, com modos afectados e beatos, benzeu-se e rezou. Primeiro, de forma tímida e silenciosa, mas depois, de forma completamente despudorada. Era necessário, imperioso e urgente que alguém se lembrasse de pedir a intervenção Divina. Ora como não havia ali, naquele momento e àquela hora, ninguém disponível, decidiu, essa enfermeira, tomar conta de tal empreitada.
O raio do médico é que não se calava com suas invectivas...
- "Onde pára o corpo do voluntariado?" - quis saber. Mas nada. Ninguém proferiu palavra ou esboçou o menor gesto que expressasse qualquer pensamento. Tudo orelhas moucas! Expectante...
- "Assim, não pode ser!..." - pensou o cirurgião, em voz alta e já com o bisturi apontado à garganta daquele Pobre-de-Cristo.
- "Onde está a humanização do Serviço?!...Então não há ninguém, por aí, disponível para mostrar um bocadinho de preocupação por este desgraçado? Onde estão as Damas da Santidade? As Voluntárias do Sagrado Coração? As Virgens do Apostolado de Não Sei Quê? E a família? Então este desgraçado não tem ninguém que o apoie?" - insistiu, desta feita já com um certo azedume na voz, movido mais pelo desespero da urgência do que propriamente pelo furor da irritação. O estado de espírito do cirurgião era exactamente igual à de todo aquele indivíduo que tem que tomar uma decisão urgente e receia dar o passo decisivo sem um suporte à retaguarda.
- "A família? Chamem alguém que assine aí um termo de responsabilidade por este desgraçado." - apelo premente, mas em vão.
"Desgraçado" foi o termo mais adequado que encontrou naquele momento para definir o paciente que tinha entre-mãos. Noutras ocasiões chamar-lhe-ia coisas bem piores. Mas, vá lá, naquele dia estava lamechas. Estava até, contra o que era costume, muito sensível à dor humana. Se assim não estivesse aquele desgraçado seria um pobre diabo qualquer ou um filho-da-puta que lhe estragou a hora do lazer.
*
O sujeito já não tinha consciência de nada; muito menos de que a sua tentativa de suicídio fora resultado do seu estado de abandono; da sua solidão total; do seu isolamento absoluto, enfim, da morte social a que fora votado, desde que nascera.
- "Tentei matar-me porque tinha medo da morte..." - dissera ele um dia ao Assistente Social. E sem avaliar, com precisão, o alcance das suas palavras, dissera uma verdade incontestável. Era da morte social que ele falava. Exactamente dessa morte de que ninguém fala, mas de que todos têm medo, por ser a que mata mais. E mata sem dó nem piedade! Chamam-lhe a morte-em-pé.. Morte-em-pé‚ por transformar as pessoas em objectos e torná-las seres inconscientes, verdadeiros autómatos, máquinas inanimadas, enfim, indivíduos que não pensam nem agem por si mesmo, porque vivem marginalizados, fora de qualquer contexto societário...sós, pura e simplesmente.
*
O milagre aconteceu mesmo e o sujeito foi salvo, in extremis! Se graças, ou não, à intervenção das Graças Divinas, chamadas a intervir por interposição, de último recurso, dos próprios médicos e corpo de enfermagem... é coisa que se deixa em suspenso!
O importante mesmo é que o nosso homem, o potencial suicida, acabou por fintar o mitológico esqueleto humano armado de foice. Desta vez, e uma vez mais, conseguiu driblar a própria morte. Salvou-se...
- "Salvo, para meu mal..." - confidenciou-nos, dias mais tarde, aquele que sofria, há muito tempo já, a morte na alma.
O sujeito chama-se...é verdade, ainda ninguém disse o nome dele!...O sujeito chama-se Cento e Noventa e Sete...
- "Cento e Noventa e Sete?!..."
Os burocratas do hospital, ou burócras, como eram conhecidos na gíria dos que eram da laia do nosso putativo suicida, ficaram boquiabertos de espanto, com semelhante nome e, a custo, lá conseguiram balbuciar:
- "Cento e Noventa e Sete!, desculpe, mas isso não é nome de gente!..."
- "Pois não!, mas é assim que me chamam, há muitos anos!... É assim que eu sou conhecido, praticamente desde que me conheço. Se me chamarem pelo nome verdadeiro, pelo meu nome próprio, nome de baptismo que os meus pais me deram, não sei se responderei. Sabe?!, há muito que ninguém me chama doutro modo!".
Os administrativos entreolharam-se, manifestamente perplexos por tal situação e, pasmados de espanto, durante um lapso de tempo não ousaram dizer nada. Até que um, mais afoito, atirou, em jeito de caçoada grosseira:
- "Ó Senhor Cento e Qualquer Coisa, não acha que podia abreviar isso, ficar só pelo Cento. Sim, arredondar para os Cem?!,...é que, bem vê, um nome tão comprido dá-nos muito trabalho a decorar e a escrever. E depois, não é só isso, é que eu sou fraco em contas e, quando tiver de lhe fazer a conta aos dias da sua estada neste hospital, de certeza que, sem querer, sou capaz de exorbitar um bocadinho...Sabe como é?, com tanta confusão de números!..."
E logo ouviu em resposta: - "Ó Senhor 'qualquer coisa', sim, porque o senhor também deve ser 'qualquer coisa' e, já que não me disse o seu nome, eu presumo que tenha um sobrenome igual ao meu!..., quer saber o que lhe digo? Exorbite p'rá’í o que quiser que eu, cá por mim, não faço caso nenhum. Assim como assim, não sou eu que vou pagar!..."
E continuou: - "Às tantas quem vai pagar é mesmo vocemecê...Sabe, é que eu estou preso! Estou preso e mal pago! Não tenho nada, nem ninguém, ou melhor, se tiver alguém, de nada me vale! O senhor já viu, por acaso, aqui alguém a perguntar por mim, a querer saber do meu estado de saúde, a querer saber porque é que me tentei matar? Não...!, pois não?! Por isso, olhe, é como lhe digo: exorbite, exorbite bem, à sua vontade, aí nas contas. Quanto mais o senhor exorbitar, mais vai pagar. E quanto mais o senhor pagar, mais satisfeito eu fico! Aliás, para sua informação, olhe, esta é mesmo a última consolação que me resta, a única forma de me vingar!... Por isso, vá, amigo, força, dê-lhe, exorbite..."
E repetia a palavra "exorbitar", mais pela piada que lhe achava do que propriamente por saber o que ela queria dizer.
Repetia porque, sobretudo, queria continuar a falar, mesmo não sabendo o que dizer; queria continuar a falar, indiferente à semântica das suas palavras; queria falar, ainda que fosse, falar-só-por-falar; que diabo, não era todos os dias que encontrava alguém disposto a dar-lhe ouvidos; alguém que parecia disposto a prestar-lhe atenção; alguém só para si, todo seu, como coisa sua; enfim, alguém capaz de se irritar com aquilo que ele dizia.
- "Filiação?" - atalhou o mangas-de-alpaca.
- "Não sou filiado em nada," - respondeu o meliante, pondo na sua resposta uma altivez desmesurada, muito próprio de quem se sente independente de tudo e de todos, isto é, superior a todos e a tudo.
- "Ó homem, não seja palerma! Eu quero saber o nome do seu pai e da sua mãe". - resmungou o manguelas.
- "Trezentos e Vinte e Um, e Duzentos e Dez, respectivamente". - respondeu o indigente.
O mangas-postiças corou de indignação; amandou um "foda-se", pela boca fora, em jeito de escarro; ia pedir desculpa aos presentes, pelo seu impropério, quando alguém o interrompeu...
- "Sabe, é que ele...ele é filho duma família muito...muito peculiar..."-Era a voz do Assistente Social que exercia funções na "Ilha" e, acabado de chegar ao hospital, tentava explicar, sem ferir a susceptibilidade de ninguém, aquela insólita situação.
Tentava explicar, vírgula, porque, por um lado, ninguém pode explicar nada que não saiba e, por outro, há sempre comportamentos humanos que ao observador superficial se afiguram absurdos e sem razão de ser, como é o caso do suicídio. Por isso o Assistente, por mais que quisesse e tentasse, não conseguiu balbuciar palavra ou botar discurso inteligível, antes do perguntante desbobinar um chorrilho de palavras mal cheirosas.
Tentava o Assistente explicar, então, que o respondente era filho de pai e mãe presos também, noutras "ilhas"; que o mesmo seria dizer que era filho de criminosos. E se não fosse ter puxado pelos galões da sua longa experiência nestas andanças e ter posto um pouco de tento no tino, evitando detalhes, por via das tais susceptibilidades que, involuntariamente, poderiam ser feridas, teria dito que ele era um filho-da-puta duma corja de ladrões.
Os males do Cento e Noventa e Sete radicavam exactamente aqui, neste princípio de vida atribulada. O Assistente sabia-o, mas os mangas-de-alpaca nem sonhavam!...
*
O Assistente soubera... soubera, não!, tivera notícia do que se havia passado, nesse dia, com o Cento e Noventa e Sete, mal chegara à "Ilha". Relatos, mais ou menos circunstanciados e objectivos dos factos, feitos muito subjectivamente por quem nada vira, mas tudo julgava saber, foram-lhe transmitidos pela boca dos curiosos. Nestas circunstâncias os curiosos são sempre mais que muitos! Há-os por toda a parte a espreitar à esquina do tempo. Foi-lhe transmitido, deste modo, o que se havia passado. Foi-lhe dito tudo e mais alguma coisa. Sim, porque quem conta um conto...já se sabe como é! Tudo lhe foi contado, mesmo antes de ele ter metido pé porta adentro.
- "Então, já sabe a melhor?!... O Cento e Noventa e Sete, matou-se!"
Foi assim, com essa nefasta notícia, que o guarda-porteiro o saudara nesse dia...
*
O Assistente depois de ter chegado ao hospital e ter dado uma rápida olhadela por aquela rósea medalha de carne, que o sujeito exibia, ali, bem impregnada no meio da garganta, não teve margens para dúvidas: o caso tinha sido mesmo grave!...
- "Que foi isso?" - perguntou o Técnico de Serviço Social, quase em surdina, ao ouvido do potencial suicida, ouvindo, mais ou menos, o que já sabia...
- "Tentei matar-me."
- "Porquê?"
- "Sentia-me só. Não tinha com quem conversar. Sentia-me só. Não tinha com quem...
A resposta saía-lhe catatonicamente às golfadas e aos soluços, mescla de raiva e revolta, do fundo do peito, transformado agora, depois da operação, numa caixa de ressonância mal amanhada. Uma espécie de caixa velha de sapatos, toda furada, que dava à sua voz uma entoação roufenha, só perceptível por quem há muitos anos estivesse habituado a semelhantes coisas.
A verdade é que ele não teve tempo sequer para arranjar a voz, pondo de lado o catarro. E, tempo que tivesse, pouco arranjo podia dar porque, entretanto, um soluço mais profundo e estrondoso rebentou-lhe com o dique do canal lacrimoso. Ao primeiro trovão, provocado por aquele soluço seguiram-se várias réplicas e, às várias réplicas, um rio de lágrimas. O pranto não o deixou dizer mais nada, uma forte tempestade anímica embargou-lhe a voz.
O Assistente estendeu-lhe um lenço de papel.
De imediato o Cento e Noventa e Sete se livrou do muco nasal forçando o ar pelas narinas e, já que estava naquela posição, aproveitou para expelir todo o resto daquela matéria viscosa e peganhenta que as criptas mucosas costumam segregar pelas vias da respiração chamado ranho. E fê-lo tão ruidosamente que mais parecia estar a arrancar um morto, em forma de monco, das suas entranhas.
A circunvizinhança, acto contínuo, rodou, cento e oitenta graus, todos os sentidos da atenção e, num esforço desmesurado, evitou manchar mais a cena, lançando violentamente para fora de si toda a injúria da náusea em forma de vómito. Mesmo assim, um ou outro não conseguiu evitar o impulso de se levantar e, disfarçadamente, acorrer a outro lugar que não ficava em lado nenhum. O importante era sair dali. Deixar de sentir aquela mais que repugnante situação.
O pretenso suicida apercebeu-se de tudo, isto é, da nojentice que estava provocando, mas não disse nada. Manteve-se calado. Foram poucos minutos que lhe pareceram uma eternidade. Os minutos de silêncio passados num hospital têm a duração duma eternidade.
*
Lamentando o Assistente não ter ouvido outro tipo de queixume, que não o alusivo à dor da solidão, dor que mata, é certo, e porque mata se lamenta..., a verdade, porém, é que, de momento, lamentável era não ter podido ouvir outras razões. Sim, porque essas, da solidão, ele já as conhecia há muito tempo. Agora queria saber mais. Queria saber tudo o que se passava na cabeça dum suicida na hora da consumação do acto.
Assim, lamentando, pensou: - "quão diferente seria a história do suicídio, se fosse contada pelos próprios suicidas?"
Depois, acabou por sentir vergonha de si mesmo. Vergonha porquê?!... A resposta encontrou-a no fundo da sua consciência: - "porque pensamentos egoístas como este, numa hora destas, eram indignos duma pessoa de bem. Nenhum Assistente Social deve procurar entrar no âmago do problema existencial de ninguém, por simples curiosidade. Se algum dia o tiver que fazer...então que seja para satisfazer a necessidade desse alguém...e mais nada!" - continuou ele a pensar, corando cada vez mais. E, como forma de disfarce ou remissão daquele pecado que considerou gravíssimo partiu de imediato para outro tipo de elucubrações sucedâneas, do género: - "quão diferente seria a história do drogado, se fosse contada pelos próprios toxicodependentes?; quão diferente seria a história do alcoolismo, se fosse contada pelos próprios alcoólicos?; quão diferente seria a história da prostituição, se fosse contada pelas próprias prostitutas?, enfim, quão diferente seria a História do Homem, se fosse contada, não pelos amigos da heurística e hermenêutica, mas sim pelos próprios intervenientes na acção..., naquela acção que deixou marcas no tempo... e fez a verdadeira História!
Estes exemplos bastaram para salvar-lhe a face e livrá-lo da vergonha daquele pensamento tão egoísta e asqueroso. Sim, o Assistente ainda julgava ter, dentro de si, um pingo de pudor. E tinha. O sentimento penoso que lhe ruborou as faces, não o podia negar a ninguém, fora-lhe causado pelo pejo da desonra daquele acto indecoroso. Naquele momento, sentiu que era indecente querer satisfazer sua curiosidade mórbida à custa da desgraça alheia.
Se o Assistente Social queria saber o que sentia um suicida antes de consumar o acto, porque não tentar, ele próprio, o suicídio?!
*
Passada a dor do remorso, motivada por aquele sentimento impróprio, pôs de lado a couraça do seu profissionalismo, escudo protector de qualquer situação lamecheira, e condoeu-se, de verdade, ao ver o que via, ao ouvir o que ouvia e ao sentir o que sentia.
Doeu-lhe sentir aquela solidão.
Doeu-lhe saber que, no meio de tantos homens, havia tantos homens sós...
Doeu-lhe conhecer, de perto e ao vivo, aquela ilha-feita-de-carne-humana. Carne que sentia. Ilha que sofria. Solidão que matava...
Pensava assim o Assistente Social que, pondo de lado a couraça protectora do profissionalismo que o impedia, como impede a qualquer um de penetrar na medula do problema daqueles que sofrem, se perderia como profissional, mas ganharia como ser-humano. E pensava que, entre perdas e ganhos, valeria a pena correr o risco.
Pobre Assistente!... entalou-se numa camisa de sete varas quando tentou atingir alguém no âmago do seu ser para lhe remodelar a alma e refazer a essência!..Entrou num beco sem saída! Porque...
- "Ninguém muda ninguém".- concluiu
*
Saber tanto, era compreender muito.
O Assistente já sabia demais, sobre o Cento e Noventa e Sete. E, quando assim é difícil se torna segurar a rédea da vida anímica, seja de quem for.
Quando alguém faz do entusiasmo o motor da sua vida e está na posse de certos conhecimentos que lhe permitem actuar, nada o fará parar.
Foi por isso que o Assistente Social, quando se inteirou da situação, não conseguiu segurar o touro selvagem, latente em si, mas adormecido pela ignorância. A ignorância é uma besta adormecida que não deixa ninguém actuar. A verdade é que também não deveria deixar ninguém dormir!...Oh, mas quantos adormecem abraçados a ela!, e a procuram deliberadamente, para poderem dormir descansados!
O Assistente, querendo saber alguma coisa, movido por simples curiosidade, acabou por saber muito mais do que queria. E isso, foi-lhe fatal. Nunca mais dormiu descansado...
A curiosidade mata. Mata porque nós morremos, sempre, um pouco, com a morte de alguém. Mesmo que esse alguém seja um voluntarioso suicida. Mesmo que este tenha procurado, deliberadamente, na morte, um pouco de paz, sossego, tranquilidade e amor. Amor na sua forma mais pura, porquanto revestido de todo o tipo de compreensão que só a verdadeira compaixão sustenta.
Amar é sempre morrer um pouco pelos outros.
*
O Cento e Noventa e Sete era um homem com uma constituição corporal inversamente proporcional à sua estatura psíquica. Tinha um corpo grande e sólido, mas uma alma pequena e frágil. Como forma de subsistência, recebia uma pensão miserável. Um dia, o Assistente depois de o ter medido de alto a baixo, mirado e remirado, e contemplado sua compleição física, como não lhe achasse defeitos físicos visíveis indagou junto da sua inocente pessoa:
- "Aumento de pensão?! Você quer aumento de pensão por invalidez?!...Mas você sofre de quê?!" - ao que o nosso homem respondeu:
- "Bem, para ser franco, francamente ao certo, não sei! Mas o Sr. Dr. Magalhães Lemos - disse ele, confundindo o Hospital com a pessoa - diz que eu tenho uma cabeça de menino de oito anos!"
O Assistente deixou que o som destas últimas palavras entoasse na sua caixa craniana como um eco: "Uma cabeça de menino de oito anos...menino de oito anos...oito anos..."
Ele era isso mesmo!... um corpo grande, encimado por uma cabeça aparentemente normal, mas... sem miolo, conteúdo, substância, enfim, sem juízo. Por ser assim, oco, caía muitas vezes no mais profundo dos vazios, no inferno do desespero de nada compreender do que se passava em seu redor. E sentia-se triste, sem saber porquê. Uma dor de alma, para quem o via nesse estado. Tristonho, era como o Assistente o surpreendia, quase sempre.
Matava o tempo fazendo apostas com os colegas de cela, do género: adivinhar qual seria o lugar exacto onde iria poisar a mosca que, eventualmente, esvoaçasse ondulante, naquele momento, por sobre as suas cabeças. Ou fazer a corrida da barata. Arranjavam três ou quatro baratas, conforme o número de apostadores, estipulava-se o ponto de partida e o ponto de chegada. E o resto, já se sabe: era transformar aquelas malucas em verdadeiras atletas. Quem ganhasse teria direito a um maço de cigarros. Quem não tivesse dinheiro ou cigarros pagaria com o corpo. De que forma?!...Da forma mais perversa que a mais perversa das mentes humanas possa imaginar! Por falta dos bens formulados na convenção da aposta, era assim que ele, a maioria das vezes, satisfazia suas dívidas de jogo. Não havia semana alguma que não desse o corpo ao manifesto, pelo menos uma ou duas vezes. Não admira, pois, que o Cento e Noventa e Sete fosse a degradação moral em pessoa. Era-o, de facto!... Mas todo aquele que ousasse chamar-lhe paneleiro tinha direito a um arraial de porrada. Ele não confundia as águas: uma coisa era dar-se à pederastia por gosto, outra era ser obrigado a praticar actos indecorosos em nome dum compromisso de honra. Era assim que ele, donairosamente, se defendia dos ataques que lhe faziam. Tinha dignidade a sua defesa. Pelo menos, nas suas intenções. Mas a carne, fraca como é, mais dia menos dia, dará de si. Quer dizer, deixará transparecer as mazelas próprias do tratamento que lhe dão. E depois? Bem... depois já se sabe: a verdade existe sempre nas sobras da calúnia, que o mesmo será dizer: se a honra se pagasse com a desonra todos os delinquentes seriam santos ou heróis, porque para tudo arranjariam uma desculpa. Mas o certo e sabido é que "nenhum bom fim, justifica o uso dum mau meio."
Por estas e por outras o Cento e Noventa e Sete da fama de paneleiro não se livrava e, muito menos, das consequências disso. Trazia o ferrete do triplo ésse ou Tri - S, silêncio, solidão e sida, estampado no rosto, sempre à ilharga da sua vida.
A morte seria, pois, a fuga para a frente. Eis, porque a procurava de forma tão incessante. Era a terceira tentativa e jurava que à quarta seria de vez.
-."Quer apostar, Sr. Assistente?".-
- "Não".-. limitou-se este a responder, escondendo o facto de não fazer apostas com mortos.

Manuel Maia


(excerto do livro: "AMARRADOS AO CAIS DA SOLIDÃO NA ILHA DOS FALA-SÓS" a publicar, um dia...talvez!)






Capítulo II

HISTÓRIA DE UM SUICÍDIO
AS AVES DE MAU AGOURO
Manuel Maia

Quando acontece tragédia e cheira a sangue ou a morte, não faltam aves de mau agouro a fazerem ronda em torno do sucedido à cata do que puderem apanhar ao desgraçado. Vamos chamar aves de mau agouro àquelas pessoas que são portadoras de más notícias ou que são suspeitas de dar azar. Estes áugures da desgraça pululam, às dezenas ou centenas, pelos nossos hospitais, cemitérios, “ILHAS DOS FALA SÓS”, que o mesmo é dizer Prisões ou casas de internamento compulsivo e outros locais de sinistro. Já não são avis tão rara quanto isso! Vê-se um agoureiro em cada esquina de qualquer um daqueles locais funestos. Têm cara de bruxos ou adivinhos e andam sempre vestidos de negro. E mais... dizem ter arte e engenho para chamar a si as forças sobrenaturais e pô-las ao serviço dos mais necessitados. Assumem, por isso, e, por vezes, o papel de feiticeiros ( a demonologia não admite confusões a este respeito, atribuindo aos bruxos e adivinhos um papel, se não benéfico, pelo menos passivo e tolerante; e a estes, ou seja aos feiticeiros, uma função mais activa e maléfica). Pois bem feita esta destrinça cada leitor tire do saco, entre bruxos, adivinhos e feiticeiros, o personagem que mais lhe aprouver, em cada ocasião deste relato, sendo que todos fazem parte da mesma corja de alcovetas.
Andam como se disse pelos lugares mais funestos, passíveis de enlutamento, prognosticando desgraças. Batem à porta dos pobres-de-cristo ou respectiva família, cobrando qualquer coisa que se veja em troca dum favor que nunca fizeram. Qualquer homem que viva à custa da morte é perito na forma de explorar sentimentos junto de almas e corpos fragilizados. Um dia, uma destas figuras, ou figurões, vestida de fato preto, óculos escuros, chapéu, gravata e sapatos a condizer, onde até o próprio cabelo, se não for escuro, será mandado tingir dessa cor, dizíamos nós que, um dia, uma destas figuras, ou figurões aparece, de repente, para numa longa lenga-lenga dizer que fizera o favor de ter pedido a Deus Pai, Nosso Senhor, Todo Poderoso, a sua piedosa intercepção para salvar quem está prestes a morrer ou a matar-se. E frisam bem as palavras “Deus Pai, Nosso Senhor, Todo Poderoso”, porque assim o exige a sua reserva e prudência profissional. Dar a imagem de alma pia e caridosa cai sempre bem junto dos aflitos ou tolhidos pela dor. Arte em que estes homens-corvo, como são conhecidos graças à sua indumentária, demonstram ser grandes especialistas.
Pois é...um dia, lá estará o homem vestido de preto para atirar à cara do desgraçado ou sua família coisas e loisas que não lembrariam ao diabo, como estas:
- “Lembras-te daquele dia em que foste parar ao hospital de goela aberta, já mais p’ra lá do que p’ra cá?...- O exagero faz parte da sua arte. Mas o desgraçado, cá nada!, ia lá agora lembrar-se disso!...é então que o homem-de-negro, carrega mais na tinta escura e volta à carga: - “Pois é, não te lembras, mas eu estava lá...lá com as minhas rezas e mezinhas; os meus santos padroeiros e protectores, a velar por ti. Eu fiz do teu quarto a minha guarita e, qual sentinela, ali passei, noites e noites, em vigília para que nada te faltasse. Nada, mesmo! Ouviste? Sobretudo o conforto Divino. Aquele que acalenta a esperança! Eu, sim, para além do teu Anjo da Guarda, fui o teu verdadeiro médico, porque enquanto uns já carpiam tua alma, com rezas, eu tratava teu corpo, com mezinhas!” E lá prosseguiu com sua verborreia mental, afirmando coisas evidentes umas, e menos evidentes outras, de modo que aquelas, tornassem credíveis estas. Actuando por alucinações histéricas, umas vezes, e, outras, através de consoladores segredos atribuídos a ervas miraculosas que ministra aos seus consolentes, acaba por confundir, muitas vezes a alma com o corpo, que o mesmo é dizer, o espírito com a matéria. Por isso mesmo, se apresenta uma vezes como médico do corpo e outras, como carpideira da alma. E outras, ainda, imagine-se só, esta ave agoirenta apresenta-se como o mensageiro portador da má-nova ou boa-nova, conforme a notícia do passamento de qualquer doente fosse dada, respectivamente, à família ou ao agente funerário.
Aos olhos de quem sofre, estes corvos têm sempre uma missão a cumprir. Uma missão benéfica, qual seja: aliviar a dor dos outros. Não fazem outra coisa que não seja acenar com a cabeça que sim, a tudo e a todos, e dar muita atenção, ou melhor, fazerem o sacrifício de fazer de conta que dão muita atenção a quem sofre. E, quais Assistentes Sociais, ao serviço de Deus, tentam sempre inserir, a toda a força, o meio-morto na comunidade dos vivos. Mas é claro, nestes casos, têm sempre a delicadeza de dizer que estes cadáveres adiados sobrevivem graças às forças vitais, emanadas das forças divinas, que por sua intercessão são oferecidas a quem lhes pede. É nesta intercessão que os corvos concentram todas as suas importantes funções.
A cama dum hospital é o lugar de eleição, para eles. Aqui não é difícil encontrar indivíduos fragilizados, indivíduos que não sabem resistir a nada. Nem outra coisa a doença consentiria! Por seu turno os corvos ou duendes, já que dizem ter as forças sobrenaturais do seu lado, também não sabem resistir à tentação de utilizar as práticas mágicas. E fazem-no quase sempre com dolo. Só assim conseguem saciar sua sede de poder. O poder tem que fazer estragos, de vez em quando, senão não é poder. Ele, e os outros como ele, sabem muito a este respeito. Sabem, melhor que ninguém, que o poder sem controlo é mau por natureza. Nenhum destes profissionais da dor e do sofrimento tem qualquer dificuldade em atingir este desiderato, ou seja: descontrolar mentes. Basta estabelecer um paralelo entre doença e mal, e depois disso ditar a sentença crucial: a doença é o mal incarnado no homem. E com esta sentença decretam o seu poder e implantam o reino da bruxaria. Servindo-se da doença para hastearem sua bandeira, impõem o seu reino sem ritos nem processos, apenas convicções, e assim vão sobrevivendo, dominando tudo e todos, sem pejo nem peias.
- “A doença é transmitida ao homem pelas forças do mal” – dizem – “Só quem domina as forças do mal eliminará a força da doença. E só nós, com nosso poder, conseguiremos eliminá-la.”
Convicção assente e aceite, sem qualquer rebuço, por quem sofre. Quem sofre é cego, porque a dor cega, mas quem não sofre não é ninguém, porque não há ninguém que não sofra. Por isso é que neste mundo de almas penadas os corvisomens são reis e senhores. Estes indivíduos têm carta branca para deambular por todos os sectores do hospital. A morgue e os quartos dos “finalistas” ou “os quartos de final”, como, desportivamente, vão dizendo, referindo-se àqueles aposentos ocupados por doentes em fase terminal, são os seus pontos de permanência favoritos.
Quando alguém, muito aflito, procura um destes duendes e barafusta pelo tempo que perdera à sua procura, ouvem como resposta: - “eu estou sempre no lugar exacto onde é exigida a minha presença”, mostrando, assim, ser pessoa muito ocupada.
Era com os doentes, em fase de agonia da morte, que este vidente, e muitos outros como este, levava a vida.
Eles vivem com a morte, quer dizer, à custa da morte. E são videntes, sim! Quem duvida? Vêem, “claramente visto”, tudo o que as pessoas quiserem que eles vejam: aos doentes dizia-lhes, sempre, que a morte estava longe. Ora, é certo e sabido que ninguém, que ame a vida acima de tudo, gosta ou quer sentir a morte por perto. E se for jovem, embora tenha a noção clara de que a morte é a coisa mais natural, universal e quotidiana, pois apesar disso, todos nós sabemos que ele, o jovem, com toda a abertura de espírito que o caracteriza, não deixará de focalizar, sobre esta tragédia, todas as suas angústias e mobilizará todas as suas energias para a repelir e, até, suprimir. Sim, para quem é jovem, a morte há-de parecer algo sempre muito longínquo. Para eles, morrer é sempre cedo. São os outros que morrem. E nem sequer lhes passa pela cabeça que a morte pode ser um acidente brutal, inesperado, aleatório, imprevisível... e tão pouco, que ela não se situa em parte alguma por estar em toda a parte...em toda a parte como processo evolutivo, quer dizer, começa-se a morrer mal se nasça...
Dizer a qualquer moribundo que está com bom aspecto, que está ali p’rás curvas, que ainda é homem para deitar abaixo muito cabaço, é uma forma de o tornar feliz. Momentaneamente feliz. E como todo o moribundo gosta de ouvir isso, o senhor de preto lá vai fazendo o sacrifício de o dizer, com toda a desfaçatez deste mundo, sem o menor pingo de vergonha.
Quanto aos outros, isto é, quanto aos mortos, já nada adiantava dizer-lhes, fosse o que fosse, como é evidente para qualquer vidente. Porém, meia dúzia de palavras escrupulosamente bem medidas e pesadas, pensadas e repensadas, revestidas dum certo conforto anímico, ditas à família, na hora agá, com ar pesaroso, é, seguramente, sinónimo de chapa-batida.
O que havia de mais recôndito, de mais íntimo, por detrás das palavras deste tipo era qualquer coisa do género: - “ó pacóvio, se queres ouvir o que é óbvio, passa para cá a massa!” A rima ficava por conta do humor negro, também, este, muito próprio das circunstâncias. Foi em muitos funerais, melhor dizendo, entre muitos cânticos, honras e orações fúnebres que ele, um habitué destes cenários, ouviu as anedotas mais hilariantes. Por isso, porque não brincar com a morte? Porque não gozar com ela? Sim, já que ela não respeitava ninguém, porque diabo havia ele de a respeitar?
Quando alguém morria, o sr. corvo assomava-se à janela do quarto funéreo e lançava um avião de papel, igual àqueles que fazia para mandar recados à namoradinha que botava assento três carteiras adiante da sua, na escola primária, e eram, ainda hoje, volvidos mais de cinquenta anos, partes reminescentes da sua meninice. Só que desta vez, em lugar dum recado do género “amo-te muito, Maria”, transportava, esse avião de papel, no bojo, o nome dum manuel qualquer, falecido às tantas horas, no quarto tal, portador do bilhete de identidade nº tal, nascido a tantos de tal, e, finalmente, em jeito de rodapé, fazia referência à saúde financeira da família e o nome do familiar mais receptivo. Como é lógico, seria o nome do familiar mais fragilizado com a morte do ente-querido.
Cá em baixo, os agentes da morte, como eram conhecidos os agentes funerários, já sabiam: Bilhete em forma de avião, era para o sr. fulano, proprietário da funerária tal; Em forma de bola de papel, era para o sr. sicrano; Se fosse um papel de cinco, dobrado em quatro, era para o sr. beltrano...cada qual dono ou representante duma agência funerária bem definida. Quer dizer, cada um com seu código secreto e respeito discreto. A mafia não tolera quebras de sigilo. Nem aqui, nem em lado nenhum. E se com a morte não se brinca, com a mafia também não, já que ambas fizeram um pacto de sangue entre si.
Se uns abutres se alimentam da carne das suas vítimas, outros há que se alimentam do seu sangue. Assim é com todo aquele ser-humano que está ávido do poder. São homens que, facilmente, viram vampiros.
O Assistente Social que trabalhava nesta “ILHA DOS FALA SÓS” pensava que os bruxos não contaminavam as pessoas boas. Por isso, de posse deste pensamento, quis fazer do amor um acto mágico do seu poder. Mas, deu com os burrinhos na água, quer dizer, saiu-se mal desta empresa, já que no inferno, o ódio sobrepõe-se ao amor. E quando a vida é um inferno!!...

(excerto do livro: "AMARRADOS AO CAIS DA SOLIDÃO NA ILHA DOS FALA-SÓS" a publicar, um dia...talvez!)