AS AVES DE MAU AGOURO (2º cap.)

Já não são “avis” tão “rara” quanto isso! Vê-se um agoureiro em cada esquina de qualquer um daqueles locais funestos. Têm cara de bruxos ou adivinhos e andam sempre vestidos de negro. E mais... dizem ter arte e engenho para chamar a si as forças sobrenaturais e pô-las ao serviço dos mais necessitados. Assumem, por isso, e, por vezes, o papel de feiticeiros ( a demonologia não admite confusões a este respeito, atribuindo aos bruxos e adivinhos um papel, se não benéfico, pelo menos passivo e tolerante; e a estes, ou seja aos feiticeiros, uma função mais activa e maléfica). Pois bem, feita esta destrinça, cada leitor tire do saco, entre bruxos, adivinhos e feiticeiros, o personagem que mais lhe aprouver, em cada ocasião deste relato, sendo que todos fazem parte da mesma corja de alcovetas.
Andam como se disse pelos lugares mais funestos, passíveis de enlutamento, prognosticando desgraças. Batem à porta dos pobres-de-cristo ou respectiva família, cobrando qualquer coisa que se veja, em troca dum favor que nunca fizeram. Qualquer homem que viva à custa da morte é perito na forma de explorar sentimentos junto de almas e corpos fragilizados.
Um dia, uma destas figuras, (um figurão vestido de fato preto, óculos escuros, chapéu, gravata e sapatos a condizer, onde até o próprio cabelo, se não for escuro, é mandado tingir dessa cor), dizíamos nós que, um dia, uma destas figuras aparece, de repente, para, numa longa lenga-lenga, dizer que fizera o favor de ter pedido a Deus Pai, Nosso Senhor, Todo Poderoso, a sua piedosa intercessão para salvar quem está prestes a morrer ou a matar-se. E frisa bem as palavras “Deus Pai, Nosso Senhor, Todo Poderoso”, porque assim o exige a sua reserva e prudência profissional. Dar a imagem de alma pia e caridosa cai sempre bem junto dos aflitos ou tolhidos pela dor. Arte em que estes homens-corvo, como são conhecidos graças à sua indumentária, demonstram ser grandes especialistas.
Pois é...um dia, lá vem o tal homem vestido de preto atirar à cara do desgraçado ou sua família coisas e loisas que não lembrariam ao diabo, como estas:
- “Lembras-te daquele dia em que foste parar ao hospital de goela aberta, já mais p’ra lá do que p’ra cá?...- O exagero faz parte da sua arte. Mas o desgraçado, cá nada! Ia lá agora lembrar-se disso!...É então que o homem-de-negro carrega mais na tinta escura e volta à carga: - “Pois é, não te lembras, mas eu estava lá...lá com as minhas rezas e mezinhas; os meus santos padroeiros e protectores, a velar por ti. Eu fiz do teu quarto a minha guarita e, qual sentinela, ali passei, noites e noites, em vigília para que nada te faltasse. Nada, mesmo! Ouviste? Sobretudo o conforto Divino. Aquele que acalenta a esperança! Eu, sim, para além do teu Anjo da Guarda, fui o teu verdadeiro médico, porque enquanto uns já carpiam tua alma, com rezas, eu tratava teu corpo, com mezinhas!” E lá prosseguiu com sua verborreia mental, afirmando coisas evidentes umas e menos evidentes outras, de modo que aquelas tornassem credíveis estas. Actuando por alucinações histéricas, umas vezes e outras através de consoladores segredos atribuídos a ervas miraculosas que ministra aos seus consulentes, acaba por confundir, muitas vezes a alma com o corpo, que o mesmo é dizer, o espírito com a matéria. Por isso mesmo, se apresenta uma vezes como médico do corpo e outras como carpideira da alma. E outras, ainda, imagine-se só, esta ave agoirenta apresenta-se como o mensageiro, portador da má ou da boa-nova, conforme a notícia do passamento de qualquer doente fosse dada à família ou ao agente funerário.
Aos olhos de quem sofre, estes corvos têm sempre uma missão a cumprir. Uma pretensa missão benéfica: a de aliviar a dor dos outros. Não fazem outra coisa que não seja acenar com a cabeça que sim, a tudo e a todos e dar muita atenção ou, melhor, fazerem o sacrifício de fazer de conta que dão muita atenção a quem sofre. E, quais Assistentes Sociais, ao serviço de Deus, tentam sempre inserir, a toda a força, o meio-morto na comunidade dos vivos. Mas, é claro, nestes casos, têm sempre a delicadeza de dizer que estes cadáveres adiados sobrevivem graças às forças vitais, emanadas das forças divinas, que, por sua intercessão, são oferecidas a quem lhes pede. É nesta intercessão que os corvos concentram todas as suas importantes funções.
A cama dum hospital é o lugar de eleição, para eles. Aqui não é difícil encontrar indivíduos fragilizados, indivíduos que não sabem resistir a nada. Nem outra coisa a doença consentiria! Por seu turno os corvos ou duendes, já que dizem ter as forças sobrenaturais do seu lado, também não sabem resistir à tentação de utilizar as práticas mágicas. E fazem-no quase sempre com dolo. Só assim conseguem saciar sua sede de poder. O poder tem que fazer estragos, de vez em quando, senão não é poder. Ele e os outros como ele sabem muito a este respeito. Sabem, melhor que ninguém, que o poder sem controlo é mau por natureza. Nenhum destes “profissionais da dor e do sofrimento” tem qualquer dificuldade em atingir este desiderato, ou seja: descontrolar mentes. Basta estabelecer um paralelo entre doença e mal e depois disso ditar a sentença crucial: a doença é o mal incarnado no homem. E com esta sentença decretam o seu poder e implantam o reino da bruxaria. Servindo-se da doença para hastearem sua bandeira, impõem o seu reino, sem ritos nem processos, apenas de convicções. E assim vão sobrevivendo, dominando tudo e todos, sem pejo nem peias.
- “A doença é transmitida ao homem pelas forças do mal” – dizem – “Só quem domina as forças do mal eliminará a força da doença. E só nós, com nosso poder, conseguiremos eliminá-la.”
Quem sofre aceita, convencido, sem qualquer hesitação. Quem sofre é cego, porque a dor cega. Mas quem não sofre? Não há ninguém que não sofra. Por isso é que, neste mundo de almas penadas, os corvisomens são reis e senhores. Estes indivíduos têm carta branca para deambular por todos os sectores do hospital. A morgue e os quartos dos “finalistas” ou “os quartos de final”, como, desportivamente, vão dizendo, referindo-se àqueles aposentos ocupados por doentes em fase terminal, são os seus pontos de permanência favoritos.
Quando alguém, muito aflito, procura um destes duendes e barafusta pelo tempo que perdera à sua procura, ouvem como resposta: - “eu estou sempre no lugar exacto onde é exigida a minha presença”, mostrando, assim, ser pessoa muito ocupada.
É com os doentes, em fase de agonia da morte, que estes videntes, levam a vida.
Eles vivem com a morte, quer dizer, à custa da morte. São videntes, sim! Quem duvida? Vêem, “claramente visto”, tudo o que as pessoas quiserem que eles vejam: aos doentes dizem-lhes, sempre, que a morte está longe. Ora, é certo e sabido que ninguém, que ame a vida acima de tudo, gosta ou quer sentir a morte por perto. E, sobretudo, se for jovem. Embora se tenha a noção clara de que a morte é a coisa mais natural, universal e quotidiana, em qualquer idade, pois, apesar disso, todos nós sabemos que, mesmo o jovem, com toda a abertura de espírito que o caracteriza, não deixará de focalizar, sobre esta tragédia, todas as suas angústias e mobilizará todas as suas energias para a repelir e, até, suprimir. Sim, para quem é jovem, a morte parece algo sempre muito longínquo. Morrer é sempre cedo. São os outros que morrem. E nem sequer passa pela sua cabeça que a morte pode resultar de um acidente brutal, inesperado, aleatório, imprevisível... e tão pouco, que ela se situa em parte alguma por ser possível em toda a parte. Além disso, ela é um processo evolutivo, quer dizer, começa-se a morrer mal se nasça...
Dizer a qualquer moribundo que está com bom aspecto, que está ali p’rás curvas, que ainda é homem para deitar abaixo muito cabaço, é uma forma de o tornar feliz. Momentaneamente feliz. E como todo o moribundo gosta de ouvir isso, o senhor de preto lá vai fazendo o sacrifício de o dizer, com toda a desfaçatez deste mundo, sem o menor pingo de vergonha.
Quanto aos outros, isto é, quanto aos mortos, já nada adianta dizer-lhes, seja o que for, como é evidente. Porém, meia dúzia de palavras escrupulosamente bem medidas e pesadas, pensadas e repensadas, revestidas dum certo conforto anímico, ditas à família, na hora agá, com ar pesaroso é, seguramente, sinónimo de chapa-batida. O que havia de mais recôndito, de mais íntimo, por detrás das palavras deste tipo era qualquer coisa do género: - “ó pacóvio, se queres ouvir o que é óbvio, passa para cá a massa!” A rima ficava por conta do humor negro, também, este, muito próprio das circunstâncias. Foi em muitos funerais, melhor dizendo, entre muitos cânticos, honras e orações fúnebres que ele, um habitué destes cenários, ouviu as anedotas mais hilariantes. Por isso, porque não brincar com a morte? Porque não gozar com ela? Sim, já que ela não respeitava ninguém, porque diabo havia ele de a respeitar?
Quando alguém morria, o sr. corvo assomava à janela do quarto funéreo e lançava um avião de papel, igual àqueles que fazia para mandar recados à namoradinha que botava assento, três carteiras adiante da sua, na escola primária. Reminiscências da sua meninice? Sim, talvez! Só que agora, em lugar dum recado do género “amo-te muito, Maria”, esse avião de papel, transportava no bojo, o nome dum Manuel qualquer, falecido às tantas horas, no quarto tal, portador do bilhete de identidade nº tal, nascido a tantos de tal e, finalmente, em jeito de rodapé, fazia referência à saúde financeira da família e nome do familiar mais receptivo. Como é lógico, seria o nome do familiar mais fragilizado com a morte do ente-querido.
Cá em baixo, os agentes da morte, como eram conhecidos os agentes funerários, já sabiam: bilhete em forma de avião, era para o sr. fulano, proprietário da funerária tal; em forma de bola de papel, era para o sr. sicrano; se fosse um papel de cinco, dobrado em quatro, era para o sr. beltrano. Cada qual dono ou representante duma agência funerária bem definida. Quer dizer, cada um com seu código secreto e respeito discreto. A mafia não tolera quebras de sigilo. Nem aqui, nem em lado nenhum. E, se com a morte não se brinca, com a mafia também não, já que ambas fizeram um pacto de sangue entre si.
Se uns abutres se alimentam da carne das suas vítimas outros há que se alimentam do seu sangue. Assim é com todos aqueles seres-humanos que estão ávidos do poder. São homens que, facilmente, viram vampiros.
O Assistente Social que trabalhava nesta “ILHA DOS FALA SÓS” pensava que os bruxos não contaminavam as pessoas boas. Por isso, dominado por este pensamento, quis fazer do amor um acto mágico do seu poder. Mas, deu com os burrinhos na água, quer dizer, saiu-se mal desta empresa, já que no inferno, o ódio se sobrepõe ao amor. E quando a vida é um inferno!!!...

(excerto do livro: "AMARRADOS AO CAIS DA SOLIDÃO NA ILHA DOS FALA-SÓS" a publicar, um dia...talvez!)