A SANTA QUE SUMIU...II

Houve quem se risse. Quem se zangasse. Houve até vozes que gritaram:
-Ah sacana, ladrão de santas que nos enganaste!... Vais comer!
Mas o Regedor impôs respeito, havia garantido.
E Zébia, com o bombo às costas, os outros atrás, desceu todo lampeiro o caminho de regresso, com uma alegria tão grande dentro dele que lhe durou para o resto da vida.
Com o pé ligeiro e olhar contente, saco de muitas cores, com muitos bocados de pano feito posto às costas, espólio dentro, pois vinha da tropa, subia a Serra por noite chuvosa o ex-soldado Serafim.
Vinha contente já disse, pois vinha para a sua Seroa, voltava à vida campestre de que tanto gostava, e agora, depois de topar na Mina Furada as galinhei-ras que iam para o Porto e lhe haviam dado novas de estar tudo bem em sua casa, mais contente ainda, de-sagoniado, trepava Serra acima que nem uma lebre.
Chegou!!!
- Benção, senhor pai. Benção, senhora mãi. Está tudo bô?
-Está, moço, ai que falta tu nos fizeste!...
- Atão vomecês dão licença q'eu vá um bocadito ali?
- Vai, moço, vai, mas olha que ela guardou-te muito respeitinho, nós sabemos.
- Serafim, foi. Encheu os olhos e o coração com a sua Rosa. Depois com os amigos, os campos, os
montes, a Serra.
Voltou à faina da lavoura em que fora criado, ao trabalho entremeado com as cantigas das cachopas, acompanhado com a música do sino da Igreja que, à tardinha, dava o sinal de parança da lida, tocando as Trindades que todos acompanhavam para suas casas.
Era a hora da ceia.
Serafim era feliz, foi feliz.
Mas tão pouco tempo o foi, pobre Serafim!...
Portugal, para defender as suas Colónias resolve entrar na guerra, a Grande Guerra e manda tropas para França. Serafim recebe ordem de marcha. E lá foi. Arrancou de Seroa, o Serafim.
Na viagem, foi como um saco de batatas atirado para um vagão. Na Flandres, foi uma desilusão completa, uma tristeza sem fim. Sol não se via, só nevoeiro e chuva, muita chuva e lama, mais lama ainda nas trincheiras, onde o Serafim era obrigado a permanecer, vigiava o inimigo e ali comia, dormia, defecava, pior que bicho.
Serafim sofria e pensava. E nada percebia. Lá, de vez em quando, dava uma espreitadela e não raro enxergava ali mesmo à frente e a fazer o mesmo que ele, o alemão, o inimigo (inimigo?... aquele ali?...) e até sorriam, faziam acenos, pois se sentiam iguais a viver como bichos.
De repente, porém, as cornetas tocavam, as ordens partiam, os canhões e espingardas estoiravam e ouviam-se gritos e choros e pragas e viam-se pedaços de homens a saltar no ar e depois era o toque do ataque final, de correr para o inimigo de baioneta calada para matar ou morrer. Aquele "inimigo" em que Serafim espetou a baioneta no peito e o olhava , morto, com uns olhos tão grandes, não era o mesmo que ainda há pouco sorria e lhe fazia acenos, acenos de amigo?!... Serafim sofria. Aninhado na lama, de mãos apertadas na cabeça, Serafim chorava, rezava, endoidava. Depois houve os gases, sabe-se que houve. Serafim endoidou. Sabe-se que foram os gases que o puseram doido ou foi aquela vida sofrida, a que o
obrigaram, que o pôs assim?!... Sabe-se é que, assim doido, não servia para matar, não tinha utilidade e, como um saco de batatas (agora podres, sem préstimo), mandaram-no embora.
Serafim está em Seroa, mas ninguém o vê. Era como se tivesse morrido (não seria melhor) mas não,
não morreu.
Passado muito tempo, num dia de chuva, de névoa, de lama, começou a vir pela estrada abaixo um velho de barbas, de olhar desvairado, com um cabo de machado a servir de bengala - era o Serafim.
Tinha seus hábitos muito próprios, que jamais mudavam, como jamais ele fez mal a quem quer que fosse. Não ousava pedir nada, quase mandava: lembrança da Tropa?
Entrava nas vendas e "requisitava" papel, caneta e tinteiro. Escrevia nas linhas, na frente, no verso e nas margens, sem deixar nesga, sem um sarrabisco.
Depois, sempre mudo, dobrava o papel e colocava-o no bolso de dentro do seu esfarrapado casaco. -Memórias das trincheiras? Fazia o percurso de Seroa a Paços nos dias de chuva, de névoa e lama e costumava ajoelhar-se na estrada bem no meio e quase sempre nos mesmos lugares, batendo no chão, raivoso com o cabo do machado. Tirava o chapéu e levantava as mãos, parecendo que rezava e fazia esgares parecendo que sofria. Lembranças das baionetas?
Serafim não pedia, dava ordens, mandava:
- Anda, dá-me cinco escudos - comandava ele.
E, como era seu hábito, não mudava de pessoas.
Eram sempre as mesmas, que nunca se negavam. Começava pelo Adolfo Bentes, depois era o cunhado de Vila Beleza, os irmãos de Portocarreiro e da Vila Formosa, depois os irmãos Guimarães de Sobrão, Dr. Eiras, Dr. Carneiro, José Patrício, pelo menos desses me lembro bem.
Um dia, internaram o Serafim num hospício, em Barcelos, onde quase logo morreu.
Fez muita falta aos cachopos da minha igualha que gostávamos dele, apesar do cabo de machado ameaçador e dos lampejos daquele olhar que, às vezes, metiam mesmo medo.
Olhar de gaseado?
Olhar de maluco?
Olhar de quem sofreu muito, sem saber porquê!...