AS MINHAS VIAGENS

Pensar faz doer e aquece a cabeça. Treina-a porém para a arena da vida hodierna, onde as vicissitudes e as surpresas nos fazem titubear.
Pensei...pensei. Não por opção mas pelo assalto que o pensamento teima em continuar, com malvadez.
De repente...o assobio melancólico dum pássaro arredio fez-me despertar da letargia e da introspecção em que havia mergulhado ali, no mais recôndito da minha casa, no mais recôndito do meu ser.
Afinal ainda há pássaros. Não há só pássaros de 4.° e 5.° andar como na cidade de Jorge de Sena. É que surgiu outro pássaro e mais outro, em toques divinais. Era a filarmónica da minha terra, a homenagear a Gan-darela.
As folhas dos plátanos agitaram-se enfim e começaram a namorar a janela do meu quarto. Na volúpia dos sentidos, ou dos instintos, eu sei lá!, pássaros e folhas, folhas e pássaros começaram a agitar-se e a envolver-me completamente.
Soergui-me e aproximei-me da janela. A carapaça imobilizante começou a soltar-se. Quanto pode a natureza!
- "Não, não vou continuar nesta ausência, mergulhada na minha linfa, exausta e vencida, dominada e amarfanhada".
Foi neste ímpeto de vida, neste esforço de presença e neste convite fugaz da natureza que decidi partir, sem rumo. Deixava a viagem às entranhas e partia para a viagem física. Não há momentos definitivos. Nem os que gostaríamos de eternizar.
A tarde ia chegando à sua candura e o calor árido e avassalador ia-se esfumando pelos meus dedos cada vez menos hirtos.
Subi o Calvário, ali onde existiu uma Via Sacra. Na minha religiosidade modesta e introvertida, levantei os olhos para relembrar os passos de Cristo, na sua cruz. E rezei. Soltei palavras do meu âmago, sem que os lábios se mexessem, mas alvoroçou-me o coração. Faltou-me ali o Inderal para controlar a minha taquicar-dia.
Fui subindo. Ah! Como a minha terra se metamorfoseou!
Quando dei por mim, estava no Coração de Jesus, ali no monte de Covas. Novo assalto do pensamento, ali feito saudade. Revi a minha estada aí com os serãozinhos e novenas e depois com os rapazes e raparigas a bailar, recrear, namorar... Era outra a juventude. Não havia "Jessicas Lynch" a ser "feitas" prisioneiras no Iraque. Havia música dos ninhos e música, num portátil. Recordo as canções de Chico Buarque (que afinal recentemente apoiou um ditador, para minha desilusão).
Ali, no monte da saudade e da memória, para me libertar desses acessos do outrora, olhei em frente. Só sinais da modernidade! Dessa modernidade que pespega cimento por entre o verde imberbe e dócil.
Regressei quase como parti. Afinal o ver é correligionário do pensar. Pobre couraça humana, incapaz dos automatismos da vontade, de assomos de indiferença ao espraiar os olhos, para que o pensar atroz não se imponha, numa ditadura feroz e impiedosa. É esta superioridade humana que nos veio da libertação das mãos e do crescimento do cérebro e nos fez "faber" e "sapiens" que nos faz tantas vezes desejar a insensibilidade dos tempos primitivos. No meu tempo de docente, dei uma vez como tema de redacção a uma quarta classe "Se eu fosse um cão...". O rapazito, de olhos vivos e perspicazes, escreveu: "Se eu fosse um cão, mudava o mundo e fazia a paz." Ao tentar explicar que o cão não é um ser pensante e capaz de decidir, há outro petiz, um espevitado hoje feito homem de bem na vida e com a vida que diz do canto: "Ele queria dizer que os cães é que deviam ter raciocínio..." As palavras são como as cerejas e a memória é um vídeo aberto não falaz nem imaginativo. Ia-me afastando do meu roteiro. Regressei então mas tive medo. Medo é a sensação presente no nosso quotidiano. Foi por medo da perda de Marie que Bertrand Cantat, do grupo Noir Désir a matou. A morte por amor que pode justificar o masoquismo de mulheres vítimas de violência doméstica, nos dias de hoje.
Tive medo de ficar de novo retida em casa, na inactividade física, na casa ainda quente. Fui até ao Outeiro. Entrei num café e pedi um descafeinado. "O que quer dizer descafeinado?" - perguntou-me uma vez o meu médico, aquele médico amável e jovem que me tratou, no hospital e fora dele, do AVC. Era um doce e tinha a qualidade de conhecer Freamunde e gente de Freamunde. Benquista qualidade que, aliada à sua competência, à permissão da toma de chávena de café (sem cafeína) e à empatia suscitada me fez recuperar daquele imenso susto e ausentar-me do "De Profundis - Valsa Lenta" de José Carlos Pires, autor que também esteve em Freamunde e gostou de nós. Por cá passou uns dias, com os irmãos Zé Carlos e Fernando Vasconcelos, este o meu grande Mestre da vida, da Política (é com maiúscula) e da humanidade..
Freamunde é isto mesmo. Uma amálgama de lugares bonitos e de outros degradados pelas modas. E por pessoas que as modas não baralham.
Voltei atrás e entrei na Casa da Cultura. Assoberbada pela leitura do "Livro do Desassossego" (mas que leituras eu escolho!) retive alguns ensinamentos como quem sorve um copo na tasca das Elviras (ali por baixo, onde o passado se enterrou debaixo desses livros, muitos livros), copo ardente acompanhado dos biscoitos de Valongo.
Porquê ler mais? Já me bastava "A insustentável leveza do Ser" ou "Cem anos de Solidão" para me que dar nas primeiras páginas.
Fui até à janela. Olhei em volta! Ali a voz de outrora do Sr. Barros da Farmácia, coadjuvado pelo Luis Teles. E vi o Costinha de bata branca, rodeado de mocitos. Vagarosamente, como era seu timbre, o Poeta, com o livro de poemas de Eugênio de Andrade para me oferecer antes da oferta do seu próprio corpo para estudos de anatomia, subia as escadas da Praça. A Praça? Onde? Refeita, daqui a uns tempos, no Outeiro? É o passado entreaberto e cruzado com um futuro cada vez mais áspero e assustador. O hoje é um segundo que se volatiliza na minha correria e nas minhas reflexões.
Não quis retornar à leitura. Navegar meus dedos na literatura que faz pensar e doer, é errado - pensei. Deixei-me vaguear, Feira acima. Olhei a casa do Dr. Amâncio e a do Pereira da Costa. Não vi o Café Popular - o centro da intelectualidade e da discussão subversiva ao tempo de Salazar. A Glorinha já não faz pataniscas nem arroz de cabidela ("As pessoas sensíveis/não são capazes de matar galinhas, porém são capazes/de comer galinhas") *.
Vi o Arnaldo Guerra sentado nos degraus de outrora ("Ah! se o pai da menina fosse vivo, eu não estava no Asilo!").
O tempo flui nas minhas pálpebras. Porquê regressar ao Outeiro? Já lá não está o penedo-escorregão. Nem a Maria do Céu da Riqueta. Nem a Lina Criatura. "Dá-me a tua mão, Teresa Ribeiro, que ainda moras por aí!"
Ali, há varandas de roupas branqueadas por um sol furtivo que sobe e se arreda. Há rádios altos para abafar os gemidos surdos dum presente sem futuro. Sórdida modernidade, onde o quintal das couves e das galinhas é um palmo de terra comum com flores colocadas sem a esquadria das casas apalaçadas de Cesário Verde.
Continuar? - hesitei. Estava cansada. Pelos cabelos coloridos pelas tintas da drogaria moderna, escorria-me um halo de Freamunde. Queria ver mais. Continuei. Sentia-me cansada mas mais leve. É a antítese sempre presente. A hesitação entre a valsa da viagem e o regresso ao calor inusitado no canto da sala, em pensamentos que magoam. A valsa fazia-me cirandar porque os pés doem menos que a cabeça. A vida é feita de contradições, entremeada de gostos masoquistas. É "o acre prazer das dores" de Almeida Garrett.
Venceu a valsa. Rumei à Gandarela. Vi os sardin-heiros afoitos e as raparigas de ancas a abanar, de gamela à cabeça. Vi os burros dos moleiros a sorver a água que agora não é suja pela roupa. (Ah! o poder das máquinas!) É conspurcada por outro tipo de sujidade, a toxidade dum progresso que nos aporta com auras prometidas de bem-estar, que ficam por concretizar. Ah! grande Camões "continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança..."
Porque não visitar ali Fernando Santos, o meu professor de piano (mas que aluna tão fraca, Mestre!)? Não. A minha viagem era geográfica e fotografai. As fotografias a preto e branco, ficavam na parte cinzenta protegida pelo crânio duro, para que não se sublimassem em qualquer câmara escura. Então, perante tal recordação, lembrei-me da homenagem de António Ferreira a Diogo de Teive:
"Eu te honro, douto mestre, doce amigo
Quantas vezes, saudoso, cá te chamo,
Quantas vezes contigo me desejo
Cá à doce sombra d'algum verde ramo".
Continuei, sem conseguir libertar-me das opções do pensamento e do sentimento. Simbiose que faz doer! "Interrogo o infinito e às vezes choro..." canta Quen-tal. E vou como "o cavalo de sombra, cavaleiro - monge" de Pessoa "do vale à montanha, da montanha ao monte".
Ao chegar à estrada nacional, um amigo quis dar-me boleia. Valeria a pena, interromper esta viagem por um espaço e um tempo, que o tempo devorou?
Na berma da estrada havia uma placa anunciadora da "Feira dos Capões". Entabulei um diálogo com o meu motorista de ocasião que versava o capão e, implacavelmente Freamunde. "Ao capão - dizia-me -eliminaram o cio e o pio". Para a fama e glória de Freamunde, que adormece, tantas vezes, embevecida naquelas penas longas e belas!
Prometi fazer nova viagem mas tenho medo.
"Na próxima semana vou a Mossul, no Norte do Iraque" - dizia Sérgio Vieira de Melo, na véspera da sua morte. A morte é a certeza mais certeza que temos no horizonte. Para além disso só a de Marte que voltará a aproximar-se da Terra, daqui a 274 anos. Nessa altura ainda haverá capões, em Freamunde.
A viagem através da rua e da memória (estrada da saudade) não aliviou o meu estado depressivo. Vim fazer poesia. Karen Monarieff fez de Meg uma adolescente que procurava sublimar as suas angústias existenciais através da poesia. Venham daí comigo ver "Blue Car" e acompanhar Meg.
Entrei em casa, airosa mas completamente atónita. Vi coisas que já tinha visto e nunca tinha visto. Há olhares diferentes, há atenções diferentes. Conforme o ângulo de alcance, o momento e a emoção. Às vezes, meus olhos estão cegos e opacos e os silêncios de plátanos são a sebe que me limita os movimentos. Saltei a sebe e venci o ar da lua, hipnotizador e circun-scritivo. Só não me venci a mim,
"E antes que diga "mene", acordo e vejo que nem um breve engano posso ter" **.
Mas... fazer poesia, à música de Strauss é também motivo de desanuviamento. Vim tentar. A minha melodia é acre. Nunca será "disco sound". Gostaria de cantar as canções dos pássaros em sinuosidades no céu azul. Mas o céu torna-se opaco. Como os meus olhos. A poesia é uma viagem. Sempre se parte e nunca se chega. Diz Saramago em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "basta saber que a rosa-dos-ventos existe, ninguém é obrigado a partir". Mas é partir, que importa, sem norte e sem bússola. Aparelhando o barco de ilusão do Torga e a sua fé de marinheiro.
Nem que seja para o alfarrabista onde pode ter aportado um velho livro de promessas de futuro, sem as angústias existenciais do Virgílio Ferreira nem o pessimismo do Quental.
Vendo bem, com os olhos que vêem de dentro ainda há céu por detrás dos plátanos. Depois do calor, virá o Outono que deprime e dá às gentes um ar macambúzio. Mas traz um ar fresco que entra pelas narinas.
É tempo de ostracizarmos o medo do outro que habita em nós. Deportá-lo. Com os primeiros ventos do Outono. E vamos de novo partir, sem ele. Aliviados. Sem o medo corrosivo da censura do super-ego. Para uma viagem revolucionária ao futuro. Sem saudade! A saudade mata! O presente é fogo, é o avião supersónico em que não quero viajar. Deixa no ar um halo de suspeição, de medo. E o vermelho da vida e da luta.
Vamos criar uma lei universal, como a da gravidade: "É-se obrigado a partir... sem retorno, mas cantando". Até que "a voz me doa".

* Sofia de Mello Breyner
** Luís de Camões