CONTO DO VIGÁRIO COM 50% DE DESCONTO

Mas, no âmbito do contexto para que a sabedoria popular nos alerta, razão tinha o Bernardo do Outeiro para se lamentar que há dias em que se não pode sair do... carro, o que nos parece merecer uma cuidada narração.
Pois bem, este pacato cidadão pacense, minimamente conhecido no nosso meio social citadino, pelas dez horas e trinta minutos, estaciona o seu Fiesta na Praceta de Santa Eulália, mesmo ao lado da multi-secu-lar igreja paroquial, uma espécie de ex-líbris, cujas raízes graníticas datam do século dezassete. Sujeita a melhoramentos ao longo dos anos, apresenta hoje uma elegantíssima arquitectura de evidente simplicidade e é o orgulho de qualquer pacense que se preze. E o Bernardo, que felizmente ainda é vivo, é um dos que adora contemplar a encantadora igreja, airosamente
portuno interlocutor - como vão essas forças? Até parece que os anos não passam por si !
- Eu - tenta responder o Bernardo - eu não...
- Sim, sim, eu sei que vai dizer que não me conhece... não admira, há bastantes anos que não nos vemos... Eu era, ainda, um rapazinho de 14 ou 15 anos na altura em que o senhor morava na Rotunda (Praça da República) e eu ia lá muitas vezes para conversar e
estudar com o seu filho mais velho, meu grande amigo e colega no colégio das Caldinhas - disse o figurão, que continuou a conversar com uma fluência que deixou o desprevenido Bernardo de boca aberta.
- Eu sou o Zé Manei! Então não se lembra?! Um dia, já lá vão uns anitos, a sua esposa - e citou o nome correctamente - apresentou-nos ao lanche um bolo tão saboroso que ainda hoje parece que tenho o paladar na língua! Que rico bolo! Que maravilha! Nunca mais comi especialidade tão boa! E, digo-lhe senhor Bernardo, a sua esposa - era uma senhora maravilhosa e, se me permite a elogiosa referência, com todo o respeito, muito bonita e cheia de atenções para com os rapazes e meninas que tinham o privilégio de entrar na vossa casa.
O Bernardo, ia ouvindo a lengalenga do Zé Manei que, com franqueza, ainda não conseguira identificar. E, sem denunciar a impaciência que o minava porque a hora do café estava ultrapassada, a verdade é que o relato que ouvia encaixava como um "puzle" na sua memória. E, de si para si, lá ia dizendo: "não há dúvida, a rapaziada que entrava lá em casa era às dezenas.
Eram mais do que as moscas." Isto, não obstante a deselegância da comparação, com todo o respeito e consideração pelas meninas e rapazes na sua casa recebidos, com muita amizade e carinho. E, sinceramente, essa simpática mocidade deixou-lhe saudades, que jamais esquecerá.
"Azar dos diabos," - cogitava o Bernardo - "lá foi o café e a conversa com os amigos... paciência, seja pelas fraquezas humanas deste pobre pecador," -e batia, disfarçadamente, com a mão no peito, num gesto respeitoso e penitenciai.
O pior é que o obstinado do Zé Manei não cortava a trela e estava, positivamente, disposto a convencer o seu dito amigo de outros tempos. Por isso, retomou o fio à meada e atacou, qual pugilista em golpe final, com a sua táctica infalível.
- Pois, meu caro e bom amigo, senhor Bernardo, tenho imensa pena que não me reconheça, eu sei que naquela altura eu era um rapazito como muitos que passavam lá por vossa casa.
Agora sou um homem feito, portanto com uma fisionomia diferente. Mas... olhe bem para mim... olhe, olhe bem aqui para a minha testa, esta cicatriz debaixo dos cabelos - e levantou a ponta da madeixa que lhe prendia sobre a testa - Vê ? Esta foi em sua casa, escorreguei nas escadas e bati na quina da porta. O senhor foi logo comigo ao hospital e levei cinco pontos!...
O Bernardo lembrou-se que, realmente, um miúdo, uma vez, partira lá a cabeça, mas se foi na testa ou na nuca é que não sabia. Francamente, tantas coincidências ao mesmo tempo e de uma assentada, quase lhe dissiparam as dúvidas que até então mantinha. E de novo para consigo: "Realmente o Zé Manei tinha um cabelo aloirado, a cair-lhe sobre a testa, que a cobria quase totalmente. Talvez seja este, mas, agora, não é a mesma pessoa, não é aquele puto calmo, sossegado, respeitador e este fala... fala... que nem uma nora, cantando, a tirar água."...
E a machadada final é disparada pelo Zé Manei com toda a pontaria, mesmo no centro da memória do pobre Bernardo.
- Pois olhe, meu caro amigo - diz convencido o Zé Manei - na vida, quando somos bem intencionados, há sempre oportunidade de reconhecermos o bem que nos fazem e eu não quero perder esta oportunidade para lhe mostrar, a si e à sua prendada esposa, o meu
sincero reconhecimento por toda a atenção que tiveram para comigo.
E, dito isto, rapidamente, vai ao porta-bagagens do Range Rover, traz uma decorativa embalagem e entrega-a, cerimonialmente, ao Bernardo.
- Aqui está! Uma modesta oferta com o meu muito obrigado. E, já agora, se me dá licença, tomo a ousadia de abrir a caixinha para lhe poupar o incómodo da tarefa, por sinal um pouco complicada. E aproveito, também, a oportunidade de lhe identificar as peças.
E, se bem o disse, melhor o fez. Com uma agilidade impressionante, abre a embalagem e faz a respectiva apresentação das peças de pano fino:
- Uma colcha de cama rendada; uma toalha de mesa, também rendada e um jogo de cama bordado.
Tudo original da Madeira.
Esta generosa e delicada atitude caiu no coração do Bernardo tão bem ou melhor do que o café lhe cai no estômago. Por isso, já nem dele, café, se lembrava, tanto mais que das palavras do seu amigo (que agora já era) não vislumbrou quaisquer intenções propagandistas. Logo, era implícito um pedido de desculpas e o reconhecimento, inequívoco, de que, este Zé Manei, sempre era o tal... Zé Manei. Obviamente, teria de agradecer tão honrosa oferta, que sinceramente, muito o comoveu. Por isso, enquanto o Zé Manei recolhia, cuidadosamente, as peças bem ordenadas na embalagem, foi preparando um pequeno mas sentido discurso, pois também queria mostrar que era capaz de dizer duas coisas bem ditas.
- Zé Manei, sinceramente, não sei como...
- Não! Não pense nisso! - replicou o outro - não pense em agradecimentos, eu não os posso aceitar de maneira nenhuma ! Este assunto está absolutamente encerrado e vamos, a seguir, a factos mais aliciantes.
E o Bernardo, cada vez melhor impressionado com tão agradáveis momentos estava, plenamente ao dispor para ouvir o amigo. Este, apercebendo-se dessa disposição, não perdeu tempo para iniciar o ataque decisivo.
- Senhor Bernardo, nós (eu e o meu sócio) vamos abrir, no próximo sábado, uma loja de bordados e rendados, de alta qualidade, mesmo á beira da Caixa Geral de Depósitos, ou seja na Av. Dr. Nicolau Car-neiro. O senhor e a sua esposa serão nossos convidados de honra da cerimónia de abertura da loja. E sabe? O Sr. presidente da Câmara, seu ilustre amigo, também nos vai dar o prazer de estar presente. Para ele, está também reservada uma lembrança exactamente igual à que acabo de lhe oferecer. Enfim, estarão presentes muitos convidados provavelmente quase todos seus conhecidos. Estamos combinados, senhor Bernardo? - E deu a este um suave palmadinha nas costas, à qual o Bernardo reagiu com um sorriso de indisfarçável vaidade.
- Claro que pode contar comigo e com mais alguém da casa, meu caro Zé Manei ! Mas... e os convites formais, aqueles...
- Isso já se não usa, senhor Bernardo! Estão completamente fora de moda, ultrapassados! São só para casamentos dos que se armam em riealhaços à custa
de financiamentos bancários, a curto prazo, para a boda. É muito mais elegante o convite pessoal pelas nossas próprias palavras, porque nós, assim, damo-nos logo a conhecer e ficamos com umas ideias acerca dos nossos futuros clientes. E o que é importante é ter
mos, na cerimónia de abertura, meia dúzia, pelo menos de pessoas da alta sociedade, que os outros correm lá como Iebreiros a farejar a presa.
Pela primeira vez, o Bernardo sentiu um certo à vontade para dizer umas palavritas de circunstância e pensou:
"Afinal... sempre era considerado uma pessoa da alta sociedade cá na terra..." Agora podia falar, liberto de quaisquer receios ou complexos porque estava com um amigo e os amigos, que diabo, sempre são... amigos!
Mas o futuro proprietário de rendas e bordados da Av. Dr. Nicolau Carneiro estava, decididamente, preparado para o triunfo final já que as tentativas estavam a dar os frutos programados.
- Olhe! Não se admire pela falta de publicidade da abertura da loja, mas, francamente, isso não traz vantagens económicas nenhumas. De resto, isto de abrir lojas é, nos tempos que correm, a táctica mais trivial deste mundo. Por outro lado, poupa-se dinheiro,
que faz muita falta para outros objectivos negociais em vista.
- Exactamente, exactamente, meu caro Zé Manei, assim é que é planear a economia! Não faça como alguns que abrem hoje e fecham no mês seguinte, tantas vezes sem pagar a renda ao senhorio e cumprimento de outras obrigações...
Finalmente, o Bernardo conseguira dizer algumas palavras acertadas, mas ficou por aqui. - Repare - diz o Zé Manei - a grande propaganda é esta! - E dirigindo-se, de novo, ao porta-bagagens da viatura, traz mais uma embalagem com requintada apresentação. Isto, é que é propaganda! E a mercadoria topo de gama, de melhor referência, para a abertura da loja. - E, calmamente, com particular cuidado, retira da embalagem um conjunto de peças, que exibe com desmedido alarido:
- Eis a mais moderna e mais bela maravilha, autêntica relíquia madeirense, um exclusivo da nossa colecção de bordados! Esta não lha posso dar, senhor Bernardo, nem vender neste momento. É, como lhe disse há pouco, um jogo bordado de casa de banho, que vai ser a maior atracção de todo o exposição no dia da abertura da loja e o seu preço, quase simbólico, tendo em conta a alta qualidade do artigo, é apenas de quatrocentos euros.
O Bernardo, fixou a peça bordada com desmedido espanto, o que naturalmente, não passou despercebido ao homem dos bordados e rendados. E, fingindo que a vai recolher, disse, lamentoso, para o Bernardo:
- Tenho pena, meu bom amigo, como já lhe disse, só na exposição é que este jogo pode ser vendido - gosta não gosta, senhor Bernardo?
- Sim, realmente é um encanto! - ele que não percebia patavina daquilo. - Mas, sinceramente, quatro centos euros é " muita areia para a minha camioneta"...
Era disso mesmo que o Zé Manei estava á espera...
- Bom! Mas uma regra não é regra se não tiver excepção! E já que o noto interessado vou abrir essa excepção...
Interrompe o Bernardo: - Não, não é o problema da excepção... é que não tenho dinheiro para esses luxos, muito embora reconheça que a minha mulher é bem merecedora disso e muito mais. Ela iria gostar imenso, mas...
- Meu caro amigo e senhor Bernardo, agora fez-me doer o coração, que chatice! Mas eu não posso ficar indiferente aos seus desejos. Um amigo como o senhor, merece-me tudo e mais alguma coisa! - disse com um sorriso triunfal.
- Vou-lhe fazer 50% de desconto, o que não paga o custo da mercadoria, mas amigos são amigos.
O Bernardo tenta recusar o gesto benevolente do amigo, que lhe diz:
- Pronto! Aqui está o jogo e paga quando lhe convier, nem que seja a prestações. Entra agora só com metade do custo cem euros, e o resto paga depois!
Olhe, que a sua esposa bem merece que a surpreenda com tão rica oferta!
Mas o finório do vendedor já tinha estudado suficientemente o cliente de ocasião e sabia, perfeitamente, que ele era daqueles que não gosta de ficar a dever.
- Não, não! - Contesta o Bernardo. - Neste caso eu pago já porque, felizmente, ainda tenho duzentos euros na carteira. - E, num gesto repentino, saca da carteira, tira de lá 4 notas de cinquenta euros e faz o pagamento combinado, interiormente manifestando o
seu desejo.
"Duzentos euros por coisa tão bonita! E, ainda por cima, uma data de peças bordadas e rendadas que não custaram um cêntimo! Bom negócio!"
- Bem, senhor Bernardo, eu não o quero demorar mais tempo - diz o Zé Manei ansioso por se por ao fresco, já que a vigarice estava consumada. - No próximo sábado lá nos encontraremos, combinado?
Depois de um abraço apressado desapareceu com o Range Rover como quem foge da guerra, ele que acabara de ganhar mais uma batalha com a sua cuidada estratégia.
O Bernardo, alegre como o Sol que o iluminava naquele feliz dia, mete-se no Fiesta e desaparece rapidamente.
"Há! Quando chegar a casa é que vai ser uma festa"! Era isto que previa acontecer ao pensar na alegria que ia proporcionar à esposa, ela que tanto gostava de rendas e bordados.
Sai do carro logo que o estaciona junto à sua casa, corre, abre a porta e díríge-se ao encontro da mulher,
- Aqui tens! Aquilo que nunca foi possível oferecer-te! Olha, que são artigos de categoria, garantidi-nhos que nem jóias doiradas!...
A mulher, entre surpresa e curiosa, abre as embalagens. A princípio, um súbito sorriso baila-lhe nos lábios, mas à medida que vai examinando as apregoadas relíquias, mira... mira... e torna a mirar e, com um sombrio espanto, balbuciou:
- Em que loja compras-te isto?!...
- Não foi em loja nenhuma... ou melhor, há-de o ser a partir do próximo sábado! - e contou tudo direi-tinho à mulher, sem ter ainda reparado no seu semblante.
- Olha, querido, desculpa mas tu foste vigariza-do. Isto tudo não vale nem um pataco... Qual Madeira qual carapuça! Isto são artigos feitos à máquina, do mais pobre que há em qualquer parte do mundo...
O Bernardo, não acreditava no que ouvia, mas não reagiu absolutamente nada. Ficou mudo e quedo, de olhos pregados no chão, não ocultando a vergonha que o assaltava. Depois, passados alguns segundos apenas murmurou:
- Desculpa...
A mulher conforta-o e diz-lhe, talvez arrependida da apreciação impensada que fizera:
- Quem pede desculpa sou eu... Esta prenda é maravilhosa! Vou guardá-la como uma autêntica relíquia. E, até, muito mais do que isso. No fundo, bem lá no fundo do teu gesto, exprime um sentimento tão nobre que não tem comparação. É um gesto de amor!
Que melhor prenda posso desejar?! Obrigada por te teres lembrado de mim.
O Bernardo, ouviu tudo em meditativo silêncio. E, erguendo os olhos para a mulher, disse carinhosamente:
- Afinal, valeu a pena! - Ele que é, nem mais nem menos, o autor destas linhas.